Por Rejane Maria Siqueira Cavalcanti
Tinha, então, 7 anos. Foi no ano de 1964, no fatídico dia 1
de abril. No grupo escolar a diretora passava nos corredores, entrava nas salas
de aula e bradava revolução, revolução. Alunos dispensados, dispersados entre 9
e 10 da manhã. Uma manhã clara, cheia de sol. O que é revolução, pergunta a seu
irmão que também estudava na mesma escola; soldados armados, é como uma guerra,
responde. Foram para casa, ficava próxima da escola e iam caminhando. Soltaram
as bolsas com os materiais escolares e se dirigiram para a casa dos avós, que
ficava na avenida, onde moravam muitos tios e tias. Ali, ficaram a brincar na
calçada com as crianças da vizinhança e tudo parecia uma festa, carros
passavam, pessoas passavam e as crianças, felizes por terem sido dispensadas
das aulas, aproveitavam para curtir aquele momento juntas. Havia uma tia,
solteira; dedicava aos sobrinhos o amor que não conseguiu dedicar a filhos,
porque não os teve. Criava uma delas, já mocinha, que entrará na história
adiante. Titia, o que é revolução, perguntava a menina; menina, revolução é
tiro, é confusão, ai meu Deus. A tia preocupada com o seu irmão, pai da menina
e do menino, e com o outro irmão, pai da sobrinha que criava. Preocupada também
com a mãe das duas crianças que brincavam na calçada, os seus sobrinhos mais
novos, a menina e o menino. A mãe deles trabalhava como funcionária pública
civil em um quartel do exército e havia saído cedinho para o serviço no outro
lado da cidade. Não havia celular nesta época, nem computador. As TVs demoravam
a dar as notícias, e os rádios, acho que ainda estavam apurando. E assim,
esperavam no subúrbio, notícias dos parentes. Mais tarde, quando a mãe chegou,
informou que o centro da cidade fervilhava, que tudo estava muito tenso. Fora
mandada de volta pra casa quando chegou ao trabalho. Ao se dirigir à parada de
seu ônibus para voltar pra casa, não conseguiu passar, e um senhor de meia
idade lhe disse, não vá senhora, está muita confusão naquele lado. Era em
frente ao Palácio do Governo, a parada, e o exército rodeava tudo, com
metralhadoras e canhões apontados para as janelas e portas do Palácio para que
o governador não fugisse. Não fugiu, saiu pela porta da frente, mas foi feito
prisioneiro e mais tarde enviado para fora do país, como exilado político. Os dois
irmãos, pais dos sobrinhos, também haviam passado por situação constrangedora.
Um deles era dono de um barracão em um engenho de cana de açúcar, o outro, pai
dos dois pequenos, trabalhava para ele. O barracão foi rodeado por camponeses
armados com foices, que viam no seu dono a imagem do próprio patrão. Por pouco
a tragédia não ocorreu. Os camponeses, que tentavam se rebelar contra o golpe
de estado, terminaram deixando-os ir embora.
Havia também outros dois sobrinhos, irmãos entre si, um deles já pai de
família. Ambos trabalhavam na Agência Nacional, que foi fechada. O mais velho,
tempos depois, teve de sair da cidade porque não conseguia trabalhar. Foi
tentar a sorte no sul, onde talvez não fosse perseguido, já que por lá não era
conhecido. Levou consigo a mulher e quatro crianças pequenas. O outro primo, o
mais novo, militava também no movimento dos estudantes secundaristas e viu,
neste dia, colegas serem mortos no centro da cidade. Esta história, a do
sobrinho secundarista, irá se prolongar e merece um outro conto. Mas só para dá
uma ideia, entrou para a Faculdade aos 18 anos e se tornou militante do
movimento estudantil universitário e depois do Partido Comunista Brasileiro
Revolucionário (PCBR). Foi para a clandestinidade. O silêncio, os sussurros e o
medo passou a reinar nas casas de toda aquela família.
Mas a menina cresceu e aos poucos foi se inteirando das consequências do
que havia ocorrido naquele 1º de abril. Não eram mentiras contadas, eram fatos
reais que atingiram e perturbaram não só a família da menina, o crescimento da
menina, mas de muitas outras meninas e meninos, mães e pais, tios e tias, e de
muitos outros jovens, homens e mulheres de muitas outras famílias de todo o
Brasil.
A menina cresceu e foi aos poucos sendo informada, dos primos presos (um
primo e um prima), inicialmente prisões rápidas, fruto da participação destes
no movimento estudantil, especialmente após o famigerado ano de 1968, a partir
do mais famigerado ainda Artigo Institucional nº 5 (AI5), que tornou os dias do
povo brasileiro, bem mais escuros. E que levou muitos jovens à clandestinidade,
à prisão e ao exílio, entre eles os primos da menina.
O governador Miguel Arraes de Alencar sendo levado preso pelos oficiais do golpe em 1964
Jonas José Albuquerque Barros - estudante secundarista morto no Recife no ano de 1964
Ivan Rocha Aguiar - estudante secundarista morto no Recife no dia 1º de abril de 1964
O primo caçado, preso debaixo de balas, torturado e depois vindo a
cumprir 9 anos de prisão. A prima que foi para o Araguaia com o marido e de lá
para o exílio no Chile e depois no Canadá.
Este conto poderia se prolongar, mas ele termina aqui e depois, quem
sabe, inicia de novo, não mais tendo como personagem uma menina, mas uma mulher
que participou ativamente do Movimento Nacional pela Anistia, que se casou com
o primo preso político e que gerou uma criança dentro da prisão. Que viu o
primo/companheiro e seus amigos enfrentarem muitas greves de fome dentro do
cárcere. Viu os retratos dos mesmos serem estampados nos jornais da época como
terroristas, mas viu especialmente, uma geração de verdadeiros heróis, que de
início, para a menina que cresceu e virou uma jovem estudante universitária, eram
verdadeiros mitos. Porque sim, esses jovens foram barbaramente torturados,
muitos perderam as suas vidas e os seus corpos são até hoje dados como
desaparecidos. Para os que lutaram bravamente, de todas as formas, pelo fim da
ditadura militar no Brasil, especialmente para os que morreram, estão
desaparecidos ou foram presos e torturados, a menina hoje mulher tem o dever de
contar e recontar as suas histórias sobre essa época, quantas vezes forem
necessárias, “para que não se esqueça, para que nunca mais aconteça”.
Prisioneiros políticos na Penitenciária Barreto Campelo, na Ilha de Itamaracá - dentre eles, o primo da menina
Lindo Rejane, muito lindo. De uma simplicidade comovente. Fazia tempo que texto nenhum me provocava isso que Hemingway chamava "emoção visceral – aquela emoção que se estende aos pelos do braço". E como num arrepio, a emocão inundou meus olhos. Deixei rolar as lágrimas. Não são lágrimas covardes. Como já disse num poema: são mais fagulhas que ardem/entre os roçados da morte.//Plantam a revolta na vida/gritam de amor por desdita/ calam na lágrima interdita/e clamam na dor/por justiça!
ResponderExcluirParabéns, Rejaninha. Bjos... Assis
Obrigado Assis. Você é de fato um poeta e sua sensibilidade torna a sua poesia mais bela ainda. Fiquei emocionada com o seu depoimento.
ResponderExcluirTenho imenso orgulho de fazer parte dos amigos desta menina mulher a quem amo e admiro, do fundo do coração.
ResponderExcluirCris sua fofa, você é suspeita, hehehehhehe. Te amo também amiga.
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