A Mesa Vermelha, filme da cineasta pernambucana Tuca Siqueira. O enredo retrata as experiências - através de depoimentos - de 23 militantes de organizações de esquerda durante a ditadura militar, desde suas atividades como militantes, até a época em que estiveram detidos, inicialmente na Casa de Detenção do Recife (hoje Casa da Cultura) e depois na Penitenciária Barreto Campelo, em Itamaracá, Pernambuco.
Abaixo, texto de Rosa Bezerra, feito logo após assistir a
apresentação do filme no cinema São Luis, em Recife
VELHOS COMPANHEIROS
Quase todos de
cabelos brancos, muitos já sentindo o peso da idade e, por que não dizer, das
dores sofridas nos cárceres da ditadura.
No entanto, quando se reúnem o riso vem fácil, a alegria os leva de
volta àquele tempo de juventude, onde tudo era possível, até libertar uma nação
de seus algozes.
A conversa
rola solta. Os olhos brilhantes (às vezes, marejados), as lembranças que lhes
tira as rugas e o passar dos anos, os fazem voltar no tempo. Perguntam pelos
ausentes, tiram dúvidas sobre acontecimentos passados, algumas ações de que
tiveram notícias à distância, em outros estados ou em outros momentos.
Falantes,
alegres, gesticulam sem parar na tentativa de passar para o ouvinte os
sentimentos da época, os sonhos sonhados, as lutas pelos ideais, as aventuras
vividas, toda uma gama de sensações e toda uma vida jogada sem pudor, nas
pequenas chances de vitórias. O monstro da ditadura era gigantesco e contava
com armas, munições, e todo um aparato poderoso que esmagava os mais aguerridos
nomes da resistência. E havia os cooptados, os delatores sob tortura, os
delatores espontâneos, os “caçadores” de comunistas, os reacionários de
plantão, os bajuladores de Tio Sam.
Percebemos
pelos relatos que não existe vergonha pelo sofrimento passado, mas um orgulho
desmedido pelo sacrifício à liberdade, muitos deles afirmando que fariam tudo
de novo, mais bem feito. Continuam na luta, continuam vigilantes. Mas o tempo é
outro, o tempo é agora. E agora não existe aquele tempo, aquele idealismo,
aquela solidariedade, aqueles jovens que perdiam a juventude e, muitos deles, a
própria vida em prol de um ideal.
O tempo de
cadeia não os humilhou; ali lutaram com outras armas: orquestrando reivindicações,
greves de fome, defendendo os companheiros, cada um cuidando do outro ou
brigando por coisas bobas, como disse um deles. E cada um que era libertado
vivenciava um misto de alegria e tristeza: sair da masmorra e deixar os amigos
de luta. Viver livre e não estar ao lado dos que continuam lutando na prisão.
Houve até um caso de voltar à prisão para pernoite por ser feriado e não ter
pra onde ir.
Houve,
quando da saída de alguns, a certeza de que a liberdade estava próxima e a
incerteza do que o esperava lá fora. Alguns foram libertados e continuaram, sob
vigilância discreta dos órgãos de repressão; outros não encontraram mais sua
vida de volta com facilidade, pois não conseguiam emprego. O monstro ainda os
torturava na vida civil. E atemorizava a
todos com suas aberrações. Ou seja, havia o caso dos desaparecidos. E com eles
a dor eterna de uma despedida por fazer, de um ritual por cumprir, de uma mãe
que não enterra o corpo do filho. E algumas mulheres sem marido, filhos criados
sem conhecer o pai, filhos que carregam a imagem dos pais torturados, dos pais
que não se despediram, que saíram prometendo voltar e os deixaram com a
promessa não cumprida. Filhos que não esquecem “a cara amarrada”, e que, apenas
muito tempo depois, entendem o que isso queria dizer.
A ditadura
ainda persegue a muitos com seus mortos insepultos, com suas histórias ocultadas,
com os gritos desesperados dos torturados que ainda ecoam na memória, com os
pedidos de ajuda que não puderam ser atendidos. O monstro ainda mostra os
dentes aos sobreviventes que insistem em trazer à tona, o passado tenebroso de
um país sem memória. A historiografia oficial não admite ser contestada. Ou como diz um dos militantes: “os
canhões ainda estão apontados”. O que pode ser facilmente comprovado pela
arrogância com que os torturadores desfilam na sociedade e comemoram o golpe,
apesar de termos uma presidenta que foi vítima da sanha destes mesmos
usurpadores da democracia e dos direitos humanos.
Em resumo, o
encontro e o diálogo com os herois do país nos faz agradecer a quem lutou o bom
combate e arriscou a vida em prol de um ideal hoje ausente na juventude, presa
aos ideais de um pensamento pós-moderno, onde o individualismo mata sorridente,
a solidariedade e a humanidade.
Atualmente,
o imaginário coletivo preza a necessidade individual, menosprezando, inclusive,
a noção de sobrevivência da espécie humana, diferentemente das outras espécies
ditas “inferiores”. A vida nas grandes cidades brasileiras (e do mundo, também)
mostra-se demasiadamente agressiva egoísta, valorizando o parecer ter mais que qualquer outro objetivo. Matamos-nos por
motivos os mais banais, ao sinal da menor contrariedade. A atual juventude,
herdeira da modernidade, afia os dentes e rosna à menor dificuldade. Vivemos um
tempo de mortes banalizadas, de tragédias reveladoras de uma sociedade doente e
fratricida.
OBRIGADA, COMPANHEIROS!
ROSA BEZERRA, 28.05.2013.
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