domingo, 6 de abril de 2014

Velhos Companheiros



A Mesa Vermelha, filme da cineasta pernambucana Tuca Siqueira. O enredo retrata as experiências - através de depoimentos - de 23 militantes de organizações de esquerda durante a ditadura militar, desde suas atividades como militantes, até a época em que estiveram detidos, inicialmente na Casa de Detenção do Recife (hoje Casa da Cultura) e depois na Penitenciária Barreto Campelo, em Itamaracá, Pernambuco.

Abaixo, texto de Rosa Bezerra, feito logo após assistir a apresentação do filme no cinema São Luis, em Recife

VELHOS COMPANHEIROS

           Quase todos de cabelos brancos, muitos já sentindo o peso da idade e, por que não dizer, das dores sofridas nos cárceres da ditadura.  No entanto, quando se reúnem o riso vem fácil, a alegria os leva de volta àquele tempo de juventude, onde tudo era possível, até libertar uma nação de seus algozes.
            A conversa rola solta. Os olhos brilhantes (às vezes, marejados), as lembranças que lhes tira as rugas e o passar dos anos, os fazem voltar no tempo. Perguntam pelos ausentes, tiram dúvidas sobre acontecimentos passados, algumas ações de que tiveram notícias à distância, em outros estados ou em outros momentos.
            Falantes, alegres, gesticulam sem parar na tentativa de passar para o ouvinte os sentimentos da época, os sonhos sonhados, as lutas pelos ideais, as aventuras vividas, toda uma gama de sensações e toda uma vida jogada sem pudor, nas pequenas chances de vitórias. O monstro da ditadura era gigantesco e contava com armas, munições, e todo um aparato poderoso que esmagava os mais aguerridos nomes da resistência. E havia os cooptados, os delatores sob tortura, os delatores espontâneos, os “caçadores” de comunistas, os reacionários de plantão, os bajuladores de Tio Sam.
            Percebemos pelos relatos que não existe vergonha pelo sofrimento passado, mas um orgulho desmedido pelo sacrifício à liberdade, muitos deles afirmando que fariam tudo de novo, mais bem feito. Continuam na luta, continuam vigilantes. Mas o tempo é outro, o tempo é agora. E agora não existe aquele tempo, aquele idealismo, aquela solidariedade, aqueles jovens que perdiam a juventude e, muitos deles, a própria vida em prol de um ideal.
            O tempo de cadeia não os humilhou; ali lutaram com outras armas: orquestrando reivindicações, greves de fome, defendendo os companheiros, cada um cuidando do outro ou brigando por coisas bobas, como disse um deles. E cada um que era libertado vivenciava um misto de alegria e tristeza: sair da masmorra e deixar os amigos de luta. Viver livre e não estar ao lado dos que continuam lutando na prisão. Houve até um caso de voltar à prisão para pernoite por ser feriado e não ter pra onde ir.
            Houve, quando da saída de alguns, a certeza de que a liberdade estava próxima e a incerteza do que o esperava lá fora. Alguns foram libertados e continuaram, sob vigilância discreta dos órgãos de repressão; outros não encontraram mais sua vida de volta com facilidade, pois não conseguiam emprego. O monstro ainda os torturava na vida civil.  E atemorizava a todos com suas aberrações. Ou seja, havia o caso dos desaparecidos. E com eles a dor eterna de uma despedida por fazer, de um ritual por cumprir, de uma mãe que não enterra o corpo do filho. E algumas mulheres sem marido, filhos criados sem conhecer o pai, filhos que carregam a imagem dos pais torturados, dos pais que não se despediram, que saíram prometendo voltar e os deixaram com a promessa não cumprida. Filhos que não esquecem “a cara amarrada”, e que, apenas muito tempo depois, entendem o que isso queria dizer.
            A ditadura ainda persegue a muitos com seus mortos insepultos, com suas histórias ocultadas, com os gritos desesperados dos torturados que ainda ecoam na memória, com os pedidos de ajuda que não puderam ser atendidos. O monstro ainda mostra os dentes aos sobreviventes que insistem em trazer à tona, o passado tenebroso de um país sem memória. A historiografia oficial não admite ser contestada. Ou como diz um dos militantes: “os canhões ainda estão apontados”. O que pode ser facilmente comprovado pela arrogância com que os torturadores desfilam na sociedade e comemoram o golpe, apesar de termos uma presidenta que foi vítima da sanha destes mesmos usurpadores da democracia e dos direitos humanos.
            Em resumo, o encontro e o diálogo com os herois do país nos faz agradecer a quem lutou o bom combate e arriscou a vida em prol de um ideal hoje ausente na juventude, presa aos ideais de um pensamento pós-moderno, onde o individualismo mata sorridente, a solidariedade e a humanidade.
            Atualmente, o imaginário coletivo preza a necessidade individual, menosprezando, inclusive, a noção de sobrevivência da espécie humana, diferentemente das outras espécies ditas “inferiores”. A vida nas grandes cidades brasileiras (e do mundo, também) mostra-se demasiadamente agressiva egoísta, valorizando o parecer ter mais que qualquer outro objetivo. Matamos-nos por motivos os mais banais, ao sinal da menor contrariedade. A atual juventude, herdeira da modernidade, afia os dentes e rosna à menor dificuldade. Vivemos um tempo de mortes banalizadas, de tragédias reveladoras de uma sociedade doente e fratricida.

             OBRIGADA, COMPANHEIROS!

                                                                                               
  ROSA BEZERRA, 28.05.2013.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Deixe aqui o seu comentário. Os comentários serão previamente moderados.