quinta-feira, 3 de junho de 2021

Quando era menina,

lembro bem, mesmo mais nova, antes dos 9 anos de idade, chegava da escola e a tarde era na rua, na casa de coleguinhas, subindo telhados. Comprando bombos, pipocas e pirulitos na carrocinha que passava todas as tardes e deixando no pendura para a minha mãe pagar, porque comprava para todo mundo que estava comigo na hora.Eassim continuou após os 9 anos, depois que nos mudamos para uma rua mais movimentada. Sempre morei em casas, até a vida adulta. O que ficou da minha infância não foram apenas os brinquedos, que na verdade não eram tantos, mas a rua, o telhado das casas, a carrocinha, o bambolê que rodopiava, as brincadeiras de meninas, passa anel e tantas outras, os jardins das casas das amigas, da minha casa e da casa do meu avô. Adolescente, o primeiro trago em um cigarro, as paqueras, os bailes de formatura, e os espetáculos de dança e teatro que gostava, desde pequena , de produzir em casa, os lençóis que se transformavam em cortinas, os ensaios dos espetáculos. Gostava de aglutinar pessoas, juntava as amigas e apresentávamos os espetáculos. Juntava crianças e levava para programas de TV infantis na TV Jornal. Lá ia eu, com uns 14, 15 anos, cheia de gente pequena, de ônibus, para a rua do Lima. Não tenho mais a menor lembrança de como entrava nesses programas. Adorava dançar também, de ir para os assustados, bailinhos que começavam e terminavam cedo na casa de algum conhecido.. Nos domingos, ia para a casa de umas amigas, uma família enorme, vizinha do meu avô. Eram muitas irmãs, cerca de sete ao todo e umas três na minha faixa etária. Dançávamos a tarde toda ao som de Renato e seus Blue Caps e de todo o pessoal da jovem guarda. Quando maior, íamos para bailes nos clubes e voltávamos de madrugada, andando pelas ruas, passando pelos parques e subindo de saia longa nos brinquedos, até pegarmos um ônibus e muito raramente, um táxi, já com o dia amanhecendo. Teve uma época, que acordava muito cedo e ia com uma família da rua, tomar leite numa vacaria que ficava perto de onde morávamos. São lembranças maravilhosas. Não lembro de me ver, menina, com livro didático nas mãos, nem lembro das tarefas de casa. Lembro de mim com livros de literatura nas mãos. E isso não era porque não desse conta das minhas tarefas escolares. Dava e muito bem, minha mãe inclusive era formada no Magistério do Ensino Médio. Nunca trabalhou em escolas porque fez concurso público para o Ministério do Exército e lá trabalhou a sua vida inteira, mas dava aulas particulares. Mas o que ficou marcado na minha memória de criança e adolescente, foram as brincadeiras, o entretenimento. Tive uma infância livre e me sinto feliz, muito feliz por isso. Os problemas existiam e muitos. Dinheiro ou a falta dele era um dos que mais afetava o nosso dia a dia, entre outros que eram consequência deste. No entanto, em meio a todos os medos e inseguranças, o que me salvou foram as brincadeiras, foram os sonhos, foi a rua.Rejane Cavalcanti na madrugada do dia 29 de novembro de 2017. A necessidade do nada na vida das crianças por Fernanda Peixoto Jornalista e integrante da equipe de Educação e Cultura da Infância do Instituto Alana A frase acima é de uma professora de uma das seis escolas brasileiras que olhar o brincar dentro de seu território e com suas crianças, e em diálogo constante com o programa Território do Brincar. Essa troca, que propunha potencializar o brincar dentro e fora da escola, resultou em produções que foram lançadas pelo programa em 2015 – a exemplo do documentário Território do Brincar – Diálogos com escolas e de seu livro homônimo.
Afinal, como disseram os participantes desse diálogo, é necessário tempo largo para que os pequenos brinquem e explorem livremente o que há ao seu redor. Ou, como nas palavras da coordenadora do programa Território do Brincar, Renata Meirelles, precisamos criar oportunidades para a criança poder ser aquilo que ela é. “O ócio é potente na infância para que a criança possa se alimentar daquilo que vem de dentro pra fora”, afirmou a educadora em entrevista.
No entanto, para especialistas, a nossa sociedade não tem investido em tempo, espaço e tampouco circunstância para o brincar dessas crianças. Em palestra no evento trianual do International Play Association (IPA World), cuja última edição aconteceu em setembro em Calgary, no Canadá, o psicólogo e pesquisador Peter Gray alertou que a sociedade atual sofre do que ele chama de Transtorno de Déficit do Brincar.
Baseando-se em análises históricas e sociais dos Estados Unidos e de outros países, o pesquisador chegou à conclusão que, nos últimos 60 anos, houve um forte declínio do brincar. Paralelamente a isso, ocorreu o aumento de depressão, transtorno de ansiedade e suicídio entre crianças e jovens. “O desenvolvimento integral, considerando o desenvolvimento intelectual, emocional, social e cultural das crianças, está direta e intrinsecamente relacionado à possibilidade delas brincarem livremente”, afirmou.
Mais informações e referências a esta palestra podem ser encontradas no site do Centro de Referências em Educação Integral e do IPA World (em inglês).
Fato é que o ócio e o “nada” são fundamentais para que as crianças tenham autonomia na realização de seus quereres. O tempo cronometrado, fragmentado, enfraquece a possibilidade de exploração da potência e da imaginação. E sendo assim, corroído pelo acúmulo de horários rígidos, atividades e obrigações, o ócio e tudo aquilo que se desdobra a partir dele vêm perdendo seu espaço.
Nesse sentido, um livro publicado pelo filósofo Byung-Chul Han traz algumas observações relevantes para esse debate. Na obra Sociedade do Cansaço, o autor volta seu olhar para a sociedade deste início de século 21 que, segundo ele, é uma sociedade do desempenho e do trabalho. Somos estimulados 24 horas por dia, sete dias por semana, dispostos a executar múltiplas tarefas concomitantemente e sempre mergulhados em um excesso de estímulos, informações e impulsos.
Desprovidos de tempo livre e de espaço, acabamos sendo consumidos pelo cansaço, destruindo qualquer possibilidade de entrega ao lazer, à festividade e à contemplação. “O excesso da elevação do desempenho leva a um infarto da alma”, afirma o filósofo. “Aparentemente, temos tudo; só nos falta o essencial, a saber, o mundo. O mundo perdeu sua alma e sua fala, se tornou desprovido de qualquer som”, diz.
O cenário estabelecido pelo autor dialoga, de certa forma, com a visão de Peter Gray e seu discurso de que é urgente restaurar às crianças o direito de brincar. Como apontou o psicólogo, é inconcebível que familiares e escolas estejam olhando, hoje, para esse momento da vida como uma mera fase de construção de currículo, eliminando todo o potencial lúdico e expressivo da infância.
O brincar permite à criança elaborar o mundo, dá sentido a suas experiências internas e externas, amplia sua compreensão do entorno. Segundo Gray, com a perda do brincar livre, perde-se a essência da infância.
É para essa direção que queremos caminhar? Muito tempo atrás, o escritor mineiro Guimarães Rosa já nos anunciava a importância do elemento contemplativo: “Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo”.
Por tudo isso, sim: já é tempo de nos posicionarmos em defesa do “nada” na vida das nossas crianças”.
Foto: Divulgação/Território do Brincar