"No mundo das palavras há tantos artifícios, quantas são as nossas contradições" Lya Luft.
quarta-feira, 12 de novembro de 2014
Skies are crying I am watching Catching teardrops in my hands Only silence, has its ending Like we never had a chance Do you have to make me feel like There's nothing left of me?
You can take everything I have You can break everything I am Like I'm made of glass Like I'm made of paper Go on and try to tear me down I will be rising from the ground Like a skyscraper Like a skyscraper
As the smoke clears I awaken and untangle you from me Would it make you feel better To watch me while I bleed All my windows, still are broken But I'm standing on my feet
You can take everything I have You can break everything I am Like I'm made of glass Like I'm made of paper Go on and try to tear me down I will be rising from the ground Like a skyscraper Like a skyscraper
Go run, run, run I'm gonna stay right here Watch you disappear, yeah Go run run run Yeah it's a long way down But I'm closer to the clouds up here
You can take everything I have You can break everything I am Like I'm made of glass Like I'm made of paper Go on and try to tear me down I will be rising from the ground Like a skyscraper Like a skyscraper Like a skyscraper Like a skyscraper Like a skyscraper
Você sabe o que é ser filha de
um alcoólatra, você sabe?
Você sabe o que é viver
diariamente assustada com o temor de sentir o cheiro de bebida ao se aproximar
do seu pai e dizer, não, não foi dessa vez. Hoje ele veio pra casa sóbrio?
Você sabe o que é escutar da sua
mãe, seu pai bebeu e a partir daí saber que o inferno voltou ao seu lar?
Você sabe o que é ser apenas uma
garotinha, ter apenas não mais do que cinco, seis, sete, oito anos e sua mãe
mandar você ir chamar seu pai na esquina, no bar, porque a você ele atende?
Você sabe o que é fazer mais de
20 anos de terapia e ainda assim continuar sentindo medo? Continuar se achando
uma pessoa horrível? Continuar achando que você errou a sua vida inteira?
Continuar sentindo vergonha de si mesma? Continuar sentindo pena de si mesma?
Recife, 12 de novembro de 2014. À
1:15 hs da madruga. Depois de ver na TV especial sobre Demi Lovato, cantora,
menina de 22 anos, filha de alcoólatra , usuária de drogas e com transtorno bipolar
e ouvir a música que fez para o seu pai For the love of a daughter.
Ps. Hoje, 25 de março de 2015, choro quando releio o desabafo acima e escuto a música e lembro da minha história e da história da Demi Lovato. Amei e ainda amo o meu pai com um amor incondicional e tivemos a felicidade de conseguir com que parasse de beber através dos Alcoólatras Anônimos e isso pouco antes do meu filho e seu primeiro neto nascer. Ele era um homem menino, ele era um ser maravilhoso e todos o amavam muito, família e amigos. Ele foi uma das grandes vítimas dessa doença que precisa ser tratada e muito compreendida ainda.
Este post vai em homenagem e solidariedade a todas as famílias afetadas pelo alcoolismo que, sim, é uma doença das mais tristes e talvez a que mais destrói identidades.
Four years old
With my back to the door
ll I could hear
Was the family war
Your selfish hands
Always expecting more
Am I your child
Or just a charity award
You have a hollowed out heart
But it's heavy in your chest
I've tried so hard to fight it but it's hopeless
Hopeless (hopeless)
You're hopeless
Oh father
Please, father
I'd love to leave you alone
But I can't let you go
Oh father
Please, father
Put the bottle down
For the love of a daughter
It's been five year
Since we've spoken last
And you can't take back
What we never had
Oh I can be manipulated
Only so many times
Before even "I love you"
Starts to feel like a lie
YouTuber have a hollowed out hear
But it's heavy in your chest
I've tried so hard to fight it but it's hopeless
Hopeless (hopeless)
You're hopeless Oh father
Please, father
I'd love to leave you alone<
But I can't let you go
Oh father
Please, father
Put the bottle down
For the love of a daughter
Don't you remember
I'm your baby girl?
How could you push me
Out of your world?
Lied to your flesh and your blood!
Put your hands on the ones
That you swore you loved!<
/span>
Don't you remember
I'm your baby girl?
How could you throw me
Right out of your world
So young when the pain had begun
Now forever afraid of being loved
Oh father
Please, father
I'd love to leave you alone
But I can't let you go<
/span>
Oh father
Please, father
Oh father
Please, father
Put the bottle down
For the love of a daughter
Faço o tipo distraída. Atenta ao todo e desfocada de tudo. Perdida em pensamentos, divagações, viagens interiores. Do tipo que esquece a bolsa quando encontra as chaves. Atrasada, sempre correndo, sempre esquecendo. Distraída do tempo, de rostos e nomes.
Mas nunca tinha ocorrido esquecer-me de mim. Amnésia mesmo. Olhar para o espelho e perguntar quem é aquela que sorri sem jeito e diz "muito prazer". Acordar e não saber que vida é aquela, ter a sensação de estar vivendo a vida de outra pessoa, não a minha.
Aconteceu comigo. Parece loucura porque não sofri nenhum acidente, não bati a cabeça nem tive traumatismo craniano. Mas de vez em quando a vida dá um "presta atenção" na gente. E eu precisei levar duas bofetadas para acordar. Um nocaute para estacionar.
Acordei com amnésia querendo saber como vim parar aqui, que pedaço de mim fez essa viagem e que parte ficou lá atrás, sem coragem de engatar a primeira marcha. Naquele dia acordei com saudade daquela que não fez as malas, da menina que parou no tempo e tinha muitas coisas para me contar porque segui a estrada distraída e ela esteve a me observar, sabia dos meus erros, entendia minhas fraquezas, foi espectadora da minha jornada.
Acordei sem identidade e quis me encontrar com aquela que sempre soube o que queria, com a parte de mim que tinha um olhar mais adocicado perante a vida.
Como no filme "A Dona da História" em que a Carolina de meia idade encontra-se com a Carolina de dezoito anos e se pergunta como teria sido a vida se tivesse feito outras escolhas, investiguei meu passado pra entender o presente. Revi fotos, reli cartas, mergulhei em diários. Voltei a escrever, reencontrei amigos, assisti a videos. Pouco a pouco a memória foi voltando, a comunicação se restabelecendo, o branco dando lugar ao entendimento.
Então uma noite recebi uma visitante ilustre. Era a menina dos diários. Passamos a noite revendo histórias, compreendendo as escolhas, aceitando os caminhos. No fim, me encarou com ternura afirmando que fiz a escolha certa, que estou no lugar que sempre desejei estar_ apesar dos conflitos, dúvidas e mágoas.
"Isso faz parte da vida"_ ela disse, e acrescentou: "Apesar de tudo, essa é a melhor versão da sua história"...
"E pode ser uma benção se você compreender que não é porque o caminho está difícil que ele está errado..."
No dia seguinte a memória voltou e tratei de ser feliz...
Documentário exibido por Tuca Siqueira exibe depoimentos de 23 ex-presos políticos no período da ditadura militar no Recife . Veja neste aqui A Mesa Vermelha
Documentário exibido por Tuca Siqueira exibe depoimentos de 23 ex-presos políticos no período da ditadura militar no Recife, entre 1969, com a promulgação do AI 5 e 1979, com o advento da Lei da Anistia. Acompanha este documentário o debate entre os participantes,ao redor de uma mesa vermelha,sobre temas relacionados ao período da ditadura passando pelo golpe de 64, pela guerrilha do Araguaia, pela luta dentro das prisões em prol da anistia ampla, geral e irrestrita até a conjuntura atual.
A riqueza do material produzido extrapolou o espaço de um filme e expandiu-se nesse site que ora apresentamos.
Os depoimentos individuais dos protagonistas onde cada um conta suas experiências de militância, prisão política e torturas a que foram submetidos também poderão ser acessados.
A Mesa Vermelha é fruto do Projeto Marcas da Memória da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça em parceria com o Movimento Tortura Nunca Mais de Pernambuco, idealizado e coordenado pelas também ex presas políticas Yara Falcon e Lilia Gondim.
Rio de Janeiro - entre 2 e 3 horas da madrugada, sexta feira da Paixão de Cristo.
Desabrigados que foram expulsos da favela Oi-Telerj que ocuparam o espaço público em frente da Prefeitura do Rio de Janeiro porque não tinham para onde ir, revivem a Paixão de Cristo. Sofrem na pele o mesmo calvário. A Guarda Municipal e o Batalhão de Choque da Polícia Militar da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, numa ação covarde, sádica e sem a menor complacência, avançam sobre mulheres, crianças e homens forçando-os a saírem de onde estavam. Espalhando terror por todos os lados, avançavam até naqueles que tentavam fugir indo para pontos de ônibus ou em direção à Central do Brasil para pegarem trens. Choro de crianças, gritos de mulheres se ouviam por todos os lados. Alguns ativistas estavam por lá, dentre eles o pessoal do Coletivo Carranca que mostrava tudo ao vivo. Muitas pessoas não tinham para onde ir e ficaram espalhadas pelas ruas, vindo a se agruparem depois e pedir apoio na Catedral de São Sebastião do Rio de Janeiro.
A Arquidiocese do Rio de Janeiro, no entanto, lhes negou abrigo e ainda cancelou a encenação da Paixão de Cristo no dia seguinte. Mas, para que encenação se ali estavam os protagonistas dessa PAIXÃO?
Abaixo, o vídeo que mostra tudo, desde a remoção até a caminhada e a chegada das pessoas na Catedral do rio de Janeiro.
Às vezes, tento ser engraçada, mas me falta a leveza necessária para isso. Às vezes, tento ser poeta, contista, jornalista, mas me falta a destreza com as palavras. No entanto, não me falta inspiração e indignação. Esta, mesmo sem o texto adequado, nunca me faltará.
Agora, que chegaste à idade avançada de 15 anos, Maria da Graça, eu te dou este livro: Alice no País das Maravilhas.
Este livro é doido, Maria. Isto é: o sentido dele está em ti.
Escuta: se não descobrires um sentido na loucura acabarás louca. Aprende, pois, logo de saída para a grande vida, a ler este livro como um simples manual do sentido evidente de todas as coisas, inclusive as loucas. Aprende isso a teu modo, pois te dou apenas umas poucas chaves entre milhares que abrem as portas da realidade. A realidade, Maria, é louca.
Nem o Papa, ninguém no mundo, pode responder sem pestanejar à pergunta que Alice faz à gatinha: “Fala a verdade Dinah, já comeste um morcego?
Não te espantes quando o mundo amanhecer irreconhecível. Para melhor ou pior, isso acontece muitas vezes por ano. “Quem sou eu no mundo?” Essa indagação perplexa é lugar-comum de cada história de gente. Quantas vezes mais decifrares essa charada, tão entranhada em ti mesma como os teus ossos, mais forte ficarás. Não importa qual seja a resposta; o importante é dar ou inventar uma resposta. Ainda que seja mentira.
A sozinhez (esquece essa palavra que inventei agora sem querer) é inevitável. Foi o que Alice falou no fundo do poço: “Estou tão cansada de estar aqui sozinha!” O importante é que ela conseguiu sair de lá, abrindo a porta. A porta do poço! Só as criaturas humanas (nem mesmo os grandes macacos e os cães amestrados) conseguem abrir uma porta bem fechada ou vice-versa, isto é, fechar uma porta bem aberta.
Somos todos tão bobos, Maria. Praticamos uma ação trivial, e temos a presunção petulante de esperar dela grandes conseqüências. Quando Alice comeu o bolo e não cresceu de tamanho, ficou no maior dos espantos. Apesar de ser isso o que acontece, geralmente, às pessoas que comem bolo.
Maria, há uma sabedoria social ou de bolso; nem toda sabedoria tem de ser grave.
A gente vive errando em relação ao próximo e o jeito é pedir desculpas sete vezes por dia: “Oh, I beg your pardon” Pois viver é falar de corda em casa de enforcado. Por isso te digo, para tua sabedoria de bolso: se gostas de gato, experimenta o ponto de vista do rato. Foi o que o rato perguntou à Alice: “Gostarias de gato se fosses eu?”
Os homens vivem apostando corrida, Maria. Nos escritórios, nos negócios, na política, nacional e internacional, nos clubes, nos bares, nas artes, na literatura, até amigos, até irmãos, até marido e mulher, até namorados todos vivem apostando corrida. São competições tão confusas, tão cheias de truques, tão desnecessárias, tão fingindo que não é, tão ridículas muitas vezes, por caminhos tão escondidos, que, quando os atletas chegam exaustos a um ponto, costumam perguntar: “A corrida terminou! mas quem ganhou?” É bobice, Maria da Graça, disputar uma corrida se a gente não irá saber quem venceu. Se tiveres de ir a algum lugar, não te preocupe a vaidade fatigante de ser a primeira a chegar. Se chegares sempre onde quiseres, ganhaste.
Disse o ratinho: “A minha história é longa e triste!” Ouvirás isso milhares de vezes. Como ouvirás a terrível variante: “Minha vida daria um romance”. Ora, como todas as vidas vividas até o fim são longas e tristes, e como todas as vidas dariam romances, pois o romance só é o jeito de contar uma vida, foge, polida mas energeticamente, dos homens e das mulheres que suspiram e dizem: “Minha vida daria um romance!” Sobretudo dos homens. Uns chatos irremediáveis, Maria.
Os milagres sempre acontecem na vida de cada um e na vida de todos. Mas, ao contrário do que se pensa, os melhores e mais fundos milagres não acontecem de repente, mas devagar, muito devagar. Quero dizer o seguinte: a palavra depressão cairá de moda mais cedo ou mais tarde. Como talvez seja mais tarde, prepara-te para a visita do monstro, e não te desesperes ao triste pensamento de Alice: “Devo estar diminuindo de novo” Em algum lugar há cogumelos que nos fazem crescer novamente.
E escuta a parábola perfeita: Alice tinha diminuido tanto de tamanho que tomou um camundongo por um hipopótamo. Isso acontece muito, Mariazinha. Mas não sejamos ingênuos, pois o contrário também acontece. E é um outro escritor inglês que nos fala mais ou menos assim: o camundongo que expulsamos ontem passou a ser hoje um terrível rinoceronte. É isso mesmo. A alma da gente é uma máquina complicada que produz durante a vida uma quantidade imensa de camundongos que parecem hipopótamos e rinocerontes que parecem camundongos. O jeito é rir no caso da primeira confusão e ficar bem disposto para enfrentar o rinoceronte que entrou em nossos domínios disfarçado de camundongo. E como tomar o pequeno por grande e grande por pequeno é sempre meio cômico, nunca devemos perder o bom-humor. Toda a pessoa deve ter três caixas para guardar humor: uma caixa grande para o humor mais ou menos barato que a gente gasta na rua com os outros; uma caixa média para o humor que a gente precisa ter quando está sozinho, para perdoares a ti mesma, para rires de ti mesma; por fim, uma caixinha preciosa, muito escondida, para grandes ocasiões. Chamo de grandes ocasiões os momentos perigosos em que estamos cheios de dor ou de vaidade, em que sofremos a tentação de achar que fracassamos ou triunfamos, em que nos sentimos umas drogas ou muito bacanas. Cuidado, Maria, com as grandes ocasiões.
Por fim, mais uma palavra de bolso: às vezes uma pessoa se abandona de tal forma ao sofrimento, com uma tal complacência, que tem medo de não poder sair de lá. A dor também tem o seu feitiço, e este se vira contra o enfeitiçado. Por isso Alice, depois de ter chorado um lago, pensava: “Agora serei castigada, afogando-me em minhas próprias lágrimas”.
Conclusão: a própria dor deve ter a sua medida: É feio, é imodesto, é vão, é perigoso ultrapassar a fronteira de nossa dor, Maria da Graça.
A Mesa Vermelha, filme da cineasta pernambucana Tuca Siqueira. O enredo retrata as experiências - através de depoimentos - de 23 militantes de organizações de esquerda durante a ditadura militar, desde suas atividades como militantes, até a época em que estiveram detidos, inicialmente na Casa de Detenção do Recife (hoje Casa da Cultura) e depois na Penitenciária Barreto Campelo, em Itamaracá, Pernambuco.
Abaixo, texto de Rosa Bezerra, feito logo após assistir a
apresentação do filme no cinema São Luis, em Recife
VELHOS COMPANHEIROS
Quase todos de
cabelos brancos, muitos já sentindo o peso da idade e, por que não dizer, das
dores sofridas nos cárceres da ditadura.
No entanto, quando se reúnem o riso vem fácil, a alegria os leva de
volta àquele tempo de juventude, onde tudo era possível, até libertar uma nação
de seus algozes.
A conversa
rola solta. Os olhos brilhantes (às vezes, marejados), as lembranças que lhes
tira as rugas e o passar dos anos, os fazem voltar no tempo. Perguntam pelos
ausentes, tiram dúvidas sobre acontecimentos passados, algumas ações de que
tiveram notícias à distância, em outros estados ou em outros momentos.
Falantes,
alegres, gesticulam sem parar na tentativa de passar para o ouvinte os
sentimentos da época, os sonhos sonhados, as lutas pelos ideais, as aventuras
vividas, toda uma gama de sensações e toda uma vida jogada sem pudor, nas
pequenas chances de vitórias. O monstro da ditadura era gigantesco e contava
com armas, munições, e todo um aparato poderoso que esmagava os mais aguerridos
nomes da resistência. E havia os cooptados, os delatores sob tortura, os
delatores espontâneos, os “caçadores” de comunistas, os reacionários de
plantão, os bajuladores de Tio Sam.
Percebemos
pelos relatos que não existe vergonha pelo sofrimento passado, mas um orgulho
desmedido pelo sacrifício à liberdade, muitos deles afirmando que fariam tudo
de novo, mais bem feito. Continuam na luta, continuam vigilantes. Mas o tempo é
outro, o tempo é agora. E agora não existe aquele tempo, aquele idealismo,
aquela solidariedade, aqueles jovens que perdiam a juventude e, muitos deles, a
própria vida em prol de um ideal.
O tempo de
cadeia não os humilhou; ali lutaram com outras armas: orquestrando reivindicações,
greves de fome, defendendo os companheiros, cada um cuidando do outro ou
brigando por coisas bobas, como disse um deles. E cada um que era libertado
vivenciava um misto de alegria e tristeza: sair da masmorra e deixar os amigos
de luta. Viver livre e não estar ao lado dos que continuam lutando na prisão.
Houve até um caso de voltar à prisão para pernoite por ser feriado e não ter
pra onde ir.
Houve,
quando da saída de alguns, a certeza de que a liberdade estava próxima e a
incerteza do que o esperava lá fora. Alguns foram libertados e continuaram, sob
vigilância discreta dos órgãos de repressão; outros não encontraram mais sua
vida de volta com facilidade, pois não conseguiam emprego. O monstro ainda os
torturava na vida civil. E atemorizava a
todos com suas aberrações. Ou seja, havia o caso dos desaparecidos. E com eles
a dor eterna de uma despedida por fazer, de um ritual por cumprir, de uma mãe
que não enterra o corpo do filho. E algumas mulheres sem marido, filhos criados
sem conhecer o pai, filhos que carregam a imagem dos pais torturados, dos pais
que não se despediram, que saíram prometendo voltar e os deixaram com a
promessa não cumprida. Filhos que não esquecem “a cara amarrada”, e que, apenas
muito tempo depois, entendem o que isso queria dizer.
A ditadura
ainda persegue a muitos com seus mortos insepultos, com suas histórias ocultadas,
com os gritos desesperados dos torturados que ainda ecoam na memória, com os
pedidos de ajuda que não puderam ser atendidos. O monstro ainda mostra os
dentes aos sobreviventes que insistem em trazer à tona, o passado tenebroso de
um país sem memória. A historiografia oficial não admite ser contestada. Ou como diz um dos militantes: “os
canhões ainda estão apontados”. O que pode ser facilmente comprovado pela
arrogância com que os torturadores desfilam na sociedade e comemoram o golpe,
apesar de termos uma presidenta que foi vítima da sanha destes mesmos
usurpadores da democracia e dos direitos humanos.
Em resumo, o
encontro e o diálogo com os herois do país nos faz agradecer a quem lutou o bom
combate e arriscou a vida em prol de um ideal hoje ausente na juventude, presa
aos ideais de um pensamento pós-moderno, onde o individualismo mata sorridente,
a solidariedade e a humanidade.
Atualmente,
o imaginário coletivo preza a necessidade individual, menosprezando, inclusive,
a noção de sobrevivência da espécie humana, diferentemente das outras espécies
ditas “inferiores”. A vida nas grandes cidades brasileiras (e do mundo, também)
mostra-se demasiadamente agressiva egoísta, valorizando o parecer ter mais que qualquer outro objetivo. Matamos-nos por
motivos os mais banais, ao sinal da menor contrariedade. A atual juventude,
herdeira da modernidade, afia os dentes e rosna à menor dificuldade. Vivemos um
tempo de mortes banalizadas, de tragédias reveladoras de uma sociedade doente e
fratricida.
OBRIGADA, COMPANHEIROS!
ROSA BEZERRA, 28.05.2013.
domingo, 23 de fevereiro de 2014
Mineirinho
[Clarice Lispector*]
É, suponho que é em mim, como um dos representantes do nós, que devo procurar por que está doendo a morte de um facínora. E por que é que mais me adianta contar os treze tiros que mataram Mineirinho do que os seus crimes. Perguntei a minha cozinheira o que pensava sobre o assunto. Vi no seu rosto a pequena convulsão de um conflito, o mal-estar de não entender o que se sente, o de precisar trair sensações contraditórias por não saber como harmonizá-las. Fatos irredutíveis, mas revolta irredutível também, a violenta compaixão da revolta. Sentir-se dividido na própria perplexidade diante de não poder esquecer que Mineirinho era perigoso e já matara demais; e no entanto nós o queríamos vivo. A cozinheira se fechou um pouco, vendo-me talvez como a justiça que se vinga. Com alguma raiva de mim, que estava mexendo na sua alma, respondeu fria: “O que eu sinto não serve para se dizer. Quem não sabe que Mineirinho era criminoso? Mas tenho certeza de que ele se salvou e já entrou no céu”. Respondi-lhe que “mais do que muita gente que não matou”.Por que? No entanto a primeira lei, a que protege corpo e vida insubstituíveis, é a de que não matarás. Ela é a minha maior garantia: assim não me matam, porque eu não quero morrer, e assim não me deixam matar, porque ter matado será a escuridão para mim.
Esta é a lei. Mas há alguma coisa que, se me faz ouvir o primeiro e o segundo tiro com um alívio de segurança, no terceiro me deixa alerta, no quarto desassossegada, o quinto e o sexto me cobrem de vergonha, o sétimo e o oitavo eu ouço com o coração batendo de horror, no nono e no décimo minha boca está trêmula, no décimo primeiro digo em espanto o nome de Deus, no décimo segundo chamo meu irmão. O décimo terceiro tiro me assassina — porque eu sou o outro. Porque eu quero ser o outro.
Essa justiça que vela meu sono, eu a repudio, humilhada por precisar dela. Enquanto isso durmo e falsamente me salvo. Nós, os sonsos essenciais.
Para que minha casa funcione, exijo de mim como primeiro dever que eu seja sonsa, que eu não exerça a minha revolta e o meu amor, guardados. Se eu não for sonsa, minha casa estremece. Eu devo ter esquecido que embaixo da casa está o terreno, o chão onde nova casa poderia ser erguida. Enquanto isso dormimos e falsamente nos salvamos.
Até que treze tiros nos acordam, e com horror digo tarde demais — vinte e oito anos depois que Mineirinho nasceu – que ao homem acuado, que a esse não nos matem. Porque sei que ele é o meu erro. E de uma vida inteira, por Deus, o que se salva às vezes é apenas o erro, e eu sei que não nos salvaremos enquanto nosso erro não nos for precioso. Meu erro é o meu espelho, onde vejo o que em silêncio eu fiz de um homem. Meu erro é o modo como vi a vida se abrir na sua carne e me espantei, e vi a matéria de vida, placenta e sangue, a lama viva.
Em Mineirinho se rebentou o meu modo de viver. Como não amá-lo, se ele viveu até o décimo-terceiro tiro o que eu dormia? Sua assustada violência. Sua violência inocente — não nas conseqüências, mas em si inocente como a de um filho de quem o pai não tomou conta.
Tudo o que nele foi violência é em nós furtivo, e um evita o olhar do outro para não corrermos o risco de nos entendermos. Para que a casa não estremeça.
A violência rebentada em Mineirinho que só outra mão de homem, a mão da esperança, pousando sobre sua cabeça aturdida e doente, poderia aplacar e fazer com que seus olhos surpreendidos se erguessem e enfim se enchessem de lágrimas. Só depois que um homem é encontrado inerte no chão, sem o gorro e sem os sapatos, vejo que esqueci de lhe ter dito: também eu.
Eu não quero esta casa. Quero uma justiça que tivesse dado chance a uma coisa pura e cheia de desamparo em Mineirinho — essa coisa que move montanhas e é a mesma que o fez gostar “feito doido” de uma mulher, e a mesma que o levou a passar por porta tão estreita que dilacera a nudez; é uma coisa que em nós é tão intensa e límpida como uma grama perigosa de radium, essa coisa é um grão de vida que se for pisado se transforma em algo ameaçador — em amor pisado; essa coisa, que em Mineirinho se tornou punhal, é a mesma que em mim faz com que eu dê água a outro homem, não porque eu tenha água, mas porque, também eu, sei o que é sede; e também eu, que não me perdi, experimentei a perdição.
A justiça prévia, essa não me envergonharia. Já era tempo de, com ironia ou não, sermos mais divinos; se adivinhamos o que seria a bondade de Deus é porque adivinhamos em nós a bondade, aquela que vê o homem antes de ele ser um doente do crime. Continuo, porém, esperando que Deus seja o pai, quando sei que um homem pode ser o pai de outro homem.
E continuo a morar na casa fraca. Essa casa, cuja porta protetora eu tranco tão bem, essa casa não resistirá à primeira ventania que fará voar pelos ares uma porta trancada. Mas ela está de pé, e Mineirinho viveu por mim a raiva, enquanto eu tive calma.
Foi fuzilado na sua força desorientada, enquanto um deus fabricado no último instante abençoa às pressas a minha maldade organizada e a minha justiça estupidificada: o que sustenta as paredes de minha casa é a certeza de que sempre me justificarei, meus amigos não me justificarão, mas meus inimigos que são os meus cúmplices, esses me cumprimentarão; o que me sustenta é saber que sempre fabricarei um deus à imagem do que eu precisar para dormir tranqüila e que outros furtivamente fingirão que estamos todos certos e que nada há a fazer.
Tudo isso, sim, pois somos os sonsos essenciais, baluartes de alguma coisa. E sobretudo procurar não entender.
Porque quem entende desorganiza. Há alguma coisa em nós que desorganizaria tudo — uma coisa que entende. Essa coisa que fica muda diante do homem sem o gorro e sem os sapatos, e para tê-los ele roubou e matou; e fica muda diante do São Jorge de ouro e diamantes. Essa alguma coisa muito séria em mim fica ainda mais séria diante do homem metralhado. Essa alguma coisa é o assassino em mim? Não, é desespero em nós. Feito doidos, nós o conhecemos, a esse homem morto onde a grama de radium se incendiara. Mas só feito doidos, e não como sonsos, o conhecemos. É como doido que entro pela vida que tantas vezes não tem porta, e como doido compreendo o que é perigoso compreender, e só como doido é que sinto o amor profundo, aquele que se confirma quando vejo que o radium se irradiará de qualquer modo, se não for pela confiança, pela esperança e pelo amor, então miseravelmente pela doente coragem de destruição. Se eu não fosse doido, eu seria oitocentos policiais com oitocentas metralhadoras, e esta seria a minha honorabilidade.
Até que viesse uma justiça um pouco mais doida. Uma que levasse em conta que todos temos que falar por um homem que se desesperou porque neste a fala humana já falhou, ele já é tão mudo que só o bruto grito desarticulado serve de sinalização.
Uma justiça prévia que se lembrasse de que nossa grande luta é a do medo, e que um homem que mata muito é porque teve muito medo. Sobretudo uma justiça que se olhasse a si própria, e que visse que nós todos, lama viva, somos escuros, e por isso nem mesmo a maldade de um homem pode ser entregue à maldade de outro homem: para que este não possa cometer livre e aprovadamente um crime de fuzilamento.
Uma justiça que não se esqueça de que nós todos somos perigosos, e que na hora em que o justiceiro mata, ele não está mais nos protegendo nem querendo eliminar um criminoso, ele está cometendo o seu crime particular, um longamente guardado. Na hora de matar um criminoso – nesse instante está sendo morto um inocente. Não, não é que eu queira o sublime, nem as coisas que foram se tornando as palavras que me fazem dormir tranqüila, mistura de perdão, de caridade vaga, nós que nos refugiamos no abstrato.
O que eu quero é muito mais áspero e mais difícil: quero o terreno.