Carmen Lúcia Bandeira e Urian Agria de Souza são dois grandes amigos. Publiquei abaixo um texto de Carminha, como a chamo, e agora tenho a honra de postar aqui uma entrevista que ela fez com Urian, seu companheiro, e que foi publicada no excelente site pernambucano Interpoética.
Urian é um artista plástico e também escritor amefricano e negríndio, como ele mesmo se denomina. Conheçam um pouco a vida de Urian e o seu trabalho através desta entrevista. Vale muito a pena, porque, como disse uma pessoa que comentou a entrevista lá no Interpoética, "Urian e Carminha estão passando por esse tempo e não simplesmente marcando-o, mas rasgando-o com um canivete encantado de alegrias, cores e alegorias".
URIAN AGRIA DE SOUZA
por Carmen Lúcia Bezerra Bandeira
Nascido em Belém do Pará, em 13 de agosto de 1939, o artista plástico Urian Agria de Souza viveu até os quinze anos imerso no universo mítico da Amazônia, inserido nos mistérios da floresta e banhado pelas águas da Baia de Guajará.
Seu avô paterno comandava os navios que trafegavam pelo rio Amazonas, de Belém até Iquitos no Peru. Sua volta incluía muitas histórias e uma imensidão de iguarias típicas da Amazônia. Foi naquele ambiente que fez a sua iniciação à leitura e à escrita, sob a batuta de uma tia com nome de sereia – Nereida.
O outro ramo da família era formado por alfaiates e costureiras. Na convivência com eles aconteceu a iniciação à pintura durante os serões na alfaiataria, ainda muito criança.
Nos anos 80/90 foi professor de desenho e pintura na PUC/ Rio.
Como um peregrino, atravessou inúmeras vezes os estados de Minas, Bahia, Ceará e Pernambuco. Em 1972, fez o percurso navegável do rio São Francisco, que designa como a grande viagem da sua vida.
Ainda em Belém, por muitas razões, teve contato com a cultura pernambucana. Principalmente, o frevo. Na Copa do Mundo de 1950, através de um álbum de figurinhas com todos os times do Brasil, descobriu o Clube Náutico Capibaribe, nome que soou aos seus ouvidos como um poema e se mantém até hoje.
Há quinze anos, Urian está morando no Recife e “por coincidência” nessa cidade está emergindo sua consciência poética na escrita. Seu livro A cor da palavra foi premiado no concurso de literatura infantil e juvenil da CEPE e em breve será lançado.
Há doze anos nos encontramos e permanecemos juntos, às vezes nos estranhamos, mas sempre confabulamos, rimos muito, inclusive de nós mesmos. Desde o primeiro dia descobrimos um sem número de interesses comuns na cultura, o que alimenta os nossos compartilhamentos e os trabalhos de criação.
Quem é Urian Agria de Souza?
Sou um mestiço. Negríndio. Amefricano. O Agria descende do espanhol – um espanhol que casou com minha bisavó, uma africana. O Souza, vem do português, que casou com uma ancestral minha, indígena. Essas ancestralidades viveram no estado do Pará. Meus pais e eu somos de Belém.
Negríndio... amefricano... você não incorpora o europeu nessa síntese da sua ancestralidade mestiça?
Pois é...talvez porque eu me sinta mais íntegro me definindo assim. Integro, no sentido de inteiro...
Você explicou de onde vem o Agria e o Souza... e Urian? Não é um nome muito comum. Qual é a história do seu nome?
O meu nome Urian instalou em mim o compromisso de compreensão desse ser mestiço brasileiro da Amazônia, o que me levou a estender meu olhar e encaminhar meus passos por vastas regiões do país. Tentar me conhecer, conhecendo bem de perto meu povo. E isso com certeza se estenderá até a minha morte. É a minha razão de viver.
Explique melhor porque você afirma que o seu nome instalou esse compromisso ?
Meu nome não saiu de nenhum calendário quando eu nasci. Ele nasceu de um sonho de minha mãe, interpretado num terreiro, quando ela ainda namorava o meu pai. Sintetizando: no sonho ela via um caboclo pescador que seria o protetor deles dois. O nome do caboclo era Urian e minha mãe determinou que seria o nome do seu primeiro filho. Sendo eu o primogênito, tive a sorte de ganhar este nome.
Pela própria história do meu nome, me fascinou a idéia de conhecer, de penetrar essa visão cósmica de meus ancestrais.
Pelas informações enciclopédicas, o nome Urian pode ser de origem bíblica: uma variação de Urias, marido de Betsabá... ou de Uriens, marido de Morgana e pai de um dos cavaleiros do Rei Artur, da Távola Redonda. Como é que esse nome foi parar no meio dos índios da Amazônia? Você tem algum conhecimento a respeito disso?
Não.
E porque a sua mãe foi interpretar o sonho no terreiro? Ela tinha ligação com a umbanda?
Até onde eu sei, foi minha avó que levou o sonho até sua mãe de santo. As relações da minha família materna eram ligadas aos cultos afro-brasileiros. O terreiro em que se deu àquela interpretação, eu não sei exatamente qual era. O que lembro é que acompanhando meus familiares, atravessei um vasto território daqueles cultos. Inclusive alguns deveriam ser de pajelança.
Essas vivências me fascinam desde minha infância.
Eu já ouvi um antropólogo afirmar que a umbanda é a religião mais brasileira, porque parte da cosmologia dos índios nativos, porém incorpora os encantados de outras culturas que para aqui migraram, dando uma feição local e expressando, no campo da religiosidade, esse espírito mestiço. Você concorda com isso?
A preocupação com o mais isso, mais aquilo é desses pesquisadores. A minha ocupação é como essas vivências concretas me construíram como ser humano. O que me fascina é pensar como há muitos milênios os seres humanos foram organizando o universo desde o seu território naquele tempo ainda muito restrito. Não me interessa “a verdade”. Me interessa essa fantástica capacidade humana de pensar, de conhecer.
Você parte dessas referências então para desenvolver sua linguagem como artista?
Como elas são muito fortes e muito vivas em mim, é delas que eu parto para minha particular e pessoal aventura de conhecer. A pintura é, antes de tudo, meu espaço privilegiado de pensamento e reflexão.
Seus amigos tinham conhecimento da sua identidade como artista plástico, de modo que muita gente está surpresa com este prêmio de poesia... desde quando você faz poesia? Quando surgiu este interesse?
Eu também fiquei surpreso com o prêmio. Eu tive um estímulo muito grande, desde minha infância, para a leitura e a escrita. Assim, ler e escrever para mim, foi sempre normal. Objetivamente, quando estou pintando ou desenhando, conservo sempre ao meu lado um papel para anotar idéias que surgem no próprio processo de pintar. Com o tempo, por gostar de algumas idéias escritas, eu simplesmente ia elaborando. Dando forma. Até que minha companheira, (no caso, você, Carmen Lúcia), me estimulou a reunir muitos desses escritos em livro. Já tem uns dez anos essa interlocução entre nós dois.
É sugestivo o título do seu livro - A cor da palavra - principalmente quando se sabe que quem escreveu foi um artista plástico, um pintor... mas o que é mesmo essa cor da palavra? Como é essa força da pintura se transmutando, virando palavra?
O título A cor da palavra surgiu naturalmente. O que acontece é que eu tenho um grande interesse pela pintura e por poesia... sempre tive... comecei a estudar pintura na escolinha de arte do Brasil, com Augusto Rodrigues e Tiziana Bonazolo. Em seguida entrei na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), no curso de Ciências Sociais, por ser apaixonado por história e antropologia. Até que descobri que a minha paixão maior era a pintura. Fiz vestibular para a Escola Nacional de Belas Artes, para cursar Pintura. Essa determinação foi porque eu pretendia estudar com muita disciplina. Hoje fico feliz quando lembro disso. O quanto foi importante esse tempo de fundação no meu aprendizado. Assim foi com a pintura, mas eu sempre escrevi. A consciência do poético na escrita eu não sei como aconteceu! Eu simplesmente fui escrevendo, principalmente enquanto eu pintava e desenhava.
Pelo que sei, você pinta desde criança e é capaz de rememorar com muita precisão situações em que se via pintando, até altas horas, enquanto seus tios alfaiates trabalhavam.. quer falar sobre isso?
As minhas lembranças mais remotas estão aí. Eu com aquarela e lápis de cor, que eu ganhava de meu bisavô materno. É impressionante que ainda hoje eu tenha na memória, o cheiro, o aroma, de determinados lápis de cor. Os meus avós maternos e meus tios eram alfaiates e costureiras e permanentemente faziam serões que se estendiam até muito tarde da noite. Eu era posto numa cadeira alta numa ponta da mesa da alfaiataria, com meus papéis, lápis e aquarelas. Nem eu atrapalhava eles, nem eles me atrapalhavam. Eu acho que foi aí que eu fiquei apaixonado pela noite como tempo de pensar, tempo de criar.
E a poesia, qual é o lugar da poesia nas suas lembranças de infância? Você se lembra escrevendo poesia na infância? Quando você percebeu essa “vocação” de poeta?
Eu lia muito na minha infância... o estímulo na minha casa era muito grande com relação a leitura. Aliás, os jornais naquele tempo, tinham espaços permanentes para os poetas de Belém. Inclusive quando eu fui para o Rio de Janeiro, aos quinze anos de idade, o Diário de Notícias, tinha um Caderno de Cultura com muita poesia... e o Jornal do Brasil também...
Então, a leitura, a literatura e a poesia foram muito presentes na minha infância e na minha escola primária nós éramos muito estimulados a escrever.
O que significa pra você esta premiação no concurso de literatura infantil e juvenil da CEPE?
Em primeiro lugar, é louvável como política pública. Em segundo lugar é um concurso em que você se candidata usando um pseudônimo, o que significa isenção na leitura dos textos pela comissão de seleção e premiação.
Eu ter sido premiado dessa forma me dá uma alegria muito grande e conforto. Não sendo eu pernambucano e ter recebido esse prêmio aumenta ainda mais o amor que eu tenho por este estado e sua cultura. Mesmo morando no Rio de Janeiro, permanentemente eu atravessava o Nordeste, principalmente Pernambuco. Então, esse amor é antigo. E morando aqui, me possibilita conhecer mais, ter mais intimidade com esse povo.
Pra você o que é literatura juvenil? Você acha que os seus poemas estão bem definidos nesta categoria?
Acho que sim, porque muito do que eu escrevo se refere às minhas memórias de infância e adolescência. Às minhas vivências, urbanas, suburbanas, rurais, em vários lugares do país. Me parece que isso pode ser estímulo para os jovens, reconhecerem o seu próprio lugar, a sua própria cultura, a sua própria existência. Desenvolver e aprofundar esse olhar é se reconhecer, conhecer a humanidade a partir dessa parcela significativa da vida humana.
Isso eu reconheço agora, mas não escrevi para crianças ou jovens, ou mesmo adultos. Simplesmente escrevi a partir desses meus sentimentos e visões. Ao me inscrever, achei que eles caberiam na classificação de literatura juvenil.
Que poemas do livro você escolhe para ilustrar essa entrevista?
ÉBANO
Ébano porque é a cor dos que resistem
aos cortes incisivos da história
na carne e nos espíritos humanos.
aos cortes incisivos da história
na carne e nos espíritos humanos.
Ébano porque é o som das canções
que permanecem suspensas sobre o Atlântico
poderoso choro-lamento.
que permanecem suspensas sobre o Atlântico
poderoso choro-lamento.
Ébano porque só a poesia sustenta no ar
a força de viver, ainda que seja
sobre um doloroso oceano.
a força de viver, ainda que seja
sobre um doloroso oceano.
FÓSSIL
As águas se foram
e me guardei pedra.
e me guardei pedra.
Anos, séculos, milênios.
Integrados,
somos um só minério:
um velho desenho,
uma escrita,
uma lição
de solidariedade.
Integrados,
somos um só minério:
um velho desenho,
uma escrita,
uma lição
de solidariedade.
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Maravilha! Quer acrescentar alguma coisa à entrevista? Agradecer à equipe da Interpoética ou falar um pouco mais da cultura pernambucana?
Há setenta e dois anos, atravessando os muitos Brasis, é claro que eu tenho um milhão de histórias pra contar, pra rir e pra chorar (eu sou muito chorão). Foi um prazer e uma alegria enorme receber o convite do Interpoética.com para falar um pouco de minha história. São momentos em que verdadeiramente tomamos consciência do nosso existir e do nosso fazer.
Com relação à cultura pernambucana, ela me excita por estar impregnada de muitos arcaísmos que também são meus. Em permanente convivência com as muitas contemporaneidades. Essa vitalidade me alimenta e me dá muito mais força para amar a vida.
Obrigada, Urian. E obrigada também equipe do Interpoética.com por esta oportunidade de tomarmos consciência do nosso existir e do nosso fazer, de forma tão simples e agradável.
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